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domingo, 20 de julho de 2008

Identidade e Memórias


O passado habita a casa do presente que, por sua vez, habita a casa do futuro e reinventa a casa do passado com o companheirismo da memória, do espaço, das coisas, das imagens e das palavras. E afinal, de que são feitas as casas se não desses ingredientes regados num caldo cultural próprio e específico?

“O passado, o presente e o futuro – diz o autor de A poética do devaneio – dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que não raro interferem, às vezes se opondo, às vezes excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano.” (Bachelard, 2003, p.26)

Ainda que a casa seja tudo isto que até agora se disse sobre ela e muito mais, resta articular essas idéias com a categoria casa museu. Para iniciar essa articulação, pode-se fazer o exercício de ler as casas museus a partir das três zonas (“estar”, “repouso” e “serviço”) presentes em todas as casas. Uma leitura por esse viés, especialmente se realizada numa perspectiva comparativa, propiciaria uma compreensão arquitetônica, histórica e social da casa museu; permitiria perceber o lugar da casa na sociedade, o lugar dos habitantes na casa, particularmente o lugar dos homens, das mulheres e das crianças, e até mesmo o valor estético da casa museu, como expressão da criação humana; mas essa leitura não tocaria na dimensão poética, filosófica e política da casa museu. Afinal de contas, porque essa casa – e exatamente essa casa – foi transformada em uma casa museu? Por que essa casa deixou de servir como habitação de pessoas, foi ressignificada, e passou a ser um espaço explicitamente poético e político? Por que a vontade de memória, a vontade de patrimônio e a vontade de museu se concentraram nessa casa - e exatamente nessa casa - transformando-a num espaço de teatralização do passado e de criação de memórias do futuro?

São muitas as perguntas, mas, como aconselha Rainer Maria Rilke, é preciso vencer o desejo juvenil de querer responder apressadamente a todas as perguntas. É recomendável aprender a conviver com elas, dormir e acordar com elas, para que elas (as perguntas) possam fazer em nós o trabalho que lhes compete fazer.

As casas museus (sejam elas casas das camadas populares, das classes médias ou das elites sociais e econômicas), a rigor, são casas que saíram da esfera privada e entraram na esfera pública, deixaram de abrigar pessoas, mas não deixaram necessariamente de abrigar objetos, muitos dos quais foram sensibilizados pelos antigos moradores da casa. As casas museus e os seus objetos servem para evocar nos visitantes lembranças de seus antigos habitantes, de seus hábitos, sonhos, alegrias, tristezas, lutas, derrotas e vitórias; mas servem também para evocar lembranças das casas que o visitante habitou e que hoje o habitam.

Para Walter Benjamin, que visitou a casa museu de Goethe e sonhou, os museus são casas de sonho do coletivo. Por essa vereda, as casas museus podem ser compreendidas como casas que propiciam sonhos de casas e que unem universos individuais e particulares com universos coletivos.

Não há dúvida de que a casa museu encena uma dramaturgia de memória toda especial, capaz de emocionar, de quebrar certas barreiras racionais, de provocar imaginações, sonhos e encantamentos. Por isso mesmo, é preciso perder a ingenuidade em relação às casas museus: elas fazem parte de projetos políticos sustentados em determinadas perspectivas poéticas, elas também manipulam os objetos, as cores, os textos, os sons, as luzes, os espaços e criam narrativas de memória com um acento lírico tão extraordinário que até os heróis épicos, os guerreiros valentes e arrogantes, e os homens cruéis e perversos são apresentados em sua face mais cândida e humana; afinal eles estão em casa, e ali eles precisam dormir em paz, receber visitas, comer e atender a outras necessidades físicas. As casas museus, assim como os documentos, os signos e todos os outros museus, podem ser utilizadas para dizer verdades e para dizer mentiras. O que fazer? Fugir das casas museus como quem foge de casas mal assombradas? Haverá um outro caminho? Talvez seja possível exercitar uma nova imaginação museal que, abrindo mão da ingenuidade, valorize a perspectiva crítica, sem abrir mão da poética, e busque conectar a casa museu com as questões da atualidade, com os desafios do mundo contemporâneo. O exercício de uma nova imaginação museal também permitiria e estimularia a criação de novas casas museus, casas que encenassem novas dramaturgias, que valorizassem a dignidade social, o respeito às diferenças, o respeito aos direitos humanos, à liberdade, à justiça; que registrassem no presente e projetassem no futuro a memória criativa daqueles cuja memória é freqüentemente esquecida, silenciada, apagada...

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