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quarta-feira, 30 de julho de 2008

Maré Memória


“Pouco importa à palafita
que a cidade se deslustre.
Ela serve, a quem a habita,
de palacete palustre.

Ela forma o mais perfeito
conjunto habitacional,
pois não se tem o direito
de julgá-la bem ou mal.

Ela vem porque precisa
vir assim como ela é.
Vem tal como vem a brisa
ou como vem a maré.

Vem da própria natureza,
filha de tempos antigos,
e fica no mangue presa,
parindo humanos abrigos.

Ela vem do próprio homem,
que, civilizado ou não,
jamais impede que o tomem
por um ser da escuridão,

um ser de volta às cavernas
de sua alma escura e fraca,
que até nas eras modernas
põe a vida em lama e estaca,

com a pré-história no sangue
como atávica doença
que estende por todo o mangue
a sua raiz imensa.

A palafita é igual
a si mesma e mais nada:
é sala, é quarto, é quintal
de quem mora sem morada.

Em resumo a palafita,
mãe ou filha da maré,
não é feia nem bonita

alta ou baixa, apenas é."

José Chagas

In Livro Maré Memória

domingo, 20 de julho de 2008

Identidade e Memórias


O passado habita a casa do presente que, por sua vez, habita a casa do futuro e reinventa a casa do passado com o companheirismo da memória, do espaço, das coisas, das imagens e das palavras. E afinal, de que são feitas as casas se não desses ingredientes regados num caldo cultural próprio e específico?

“O passado, o presente e o futuro – diz o autor de A poética do devaneio – dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que não raro interferem, às vezes se opondo, às vezes excitando-se mutuamente. Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano.” (Bachelard, 2003, p.26)

Ainda que a casa seja tudo isto que até agora se disse sobre ela e muito mais, resta articular essas idéias com a categoria casa museu. Para iniciar essa articulação, pode-se fazer o exercício de ler as casas museus a partir das três zonas (“estar”, “repouso” e “serviço”) presentes em todas as casas. Uma leitura por esse viés, especialmente se realizada numa perspectiva comparativa, propiciaria uma compreensão arquitetônica, histórica e social da casa museu; permitiria perceber o lugar da casa na sociedade, o lugar dos habitantes na casa, particularmente o lugar dos homens, das mulheres e das crianças, e até mesmo o valor estético da casa museu, como expressão da criação humana; mas essa leitura não tocaria na dimensão poética, filosófica e política da casa museu. Afinal de contas, porque essa casa – e exatamente essa casa – foi transformada em uma casa museu? Por que essa casa deixou de servir como habitação de pessoas, foi ressignificada, e passou a ser um espaço explicitamente poético e político? Por que a vontade de memória, a vontade de patrimônio e a vontade de museu se concentraram nessa casa - e exatamente nessa casa - transformando-a num espaço de teatralização do passado e de criação de memórias do futuro?

São muitas as perguntas, mas, como aconselha Rainer Maria Rilke, é preciso vencer o desejo juvenil de querer responder apressadamente a todas as perguntas. É recomendável aprender a conviver com elas, dormir e acordar com elas, para que elas (as perguntas) possam fazer em nós o trabalho que lhes compete fazer.

As casas museus (sejam elas casas das camadas populares, das classes médias ou das elites sociais e econômicas), a rigor, são casas que saíram da esfera privada e entraram na esfera pública, deixaram de abrigar pessoas, mas não deixaram necessariamente de abrigar objetos, muitos dos quais foram sensibilizados pelos antigos moradores da casa. As casas museus e os seus objetos servem para evocar nos visitantes lembranças de seus antigos habitantes, de seus hábitos, sonhos, alegrias, tristezas, lutas, derrotas e vitórias; mas servem também para evocar lembranças das casas que o visitante habitou e que hoje o habitam.

Para Walter Benjamin, que visitou a casa museu de Goethe e sonhou, os museus são casas de sonho do coletivo. Por essa vereda, as casas museus podem ser compreendidas como casas que propiciam sonhos de casas e que unem universos individuais e particulares com universos coletivos.

Não há dúvida de que a casa museu encena uma dramaturgia de memória toda especial, capaz de emocionar, de quebrar certas barreiras racionais, de provocar imaginações, sonhos e encantamentos. Por isso mesmo, é preciso perder a ingenuidade em relação às casas museus: elas fazem parte de projetos políticos sustentados em determinadas perspectivas poéticas, elas também manipulam os objetos, as cores, os textos, os sons, as luzes, os espaços e criam narrativas de memória com um acento lírico tão extraordinário que até os heróis épicos, os guerreiros valentes e arrogantes, e os homens cruéis e perversos são apresentados em sua face mais cândida e humana; afinal eles estão em casa, e ali eles precisam dormir em paz, receber visitas, comer e atender a outras necessidades físicas. As casas museus, assim como os documentos, os signos e todos os outros museus, podem ser utilizadas para dizer verdades e para dizer mentiras. O que fazer? Fugir das casas museus como quem foge de casas mal assombradas? Haverá um outro caminho? Talvez seja possível exercitar uma nova imaginação museal que, abrindo mão da ingenuidade, valorize a perspectiva crítica, sem abrir mão da poética, e busque conectar a casa museu com as questões da atualidade, com os desafios do mundo contemporâneo. O exercício de uma nova imaginação museal também permitiria e estimularia a criação de novas casas museus, casas que encenassem novas dramaturgias, que valorizassem a dignidade social, o respeito às diferenças, o respeito aos direitos humanos, à liberdade, à justiça; que registrassem no presente e projetassem no futuro a memória criativa daqueles cuja memória é freqüentemente esquecida, silenciada, apagada...

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Museu Nacional Ferroviário


Foto de João Alfaro

domingo, 13 de julho de 2008

MUSEUS, MEMÓRIAS E MOVIMENTOS SOCIAIS

Mário Chagas[1]
I
Da modernidade ao mundo contemporâneo os museus são reconhecidos por seu poder de produzir metamorfoses de significados e funções, por sua aptidão para a adaptação aos condicionamentos históricos e sociais e sua vocação para a mediação cultural. Eles resultam de gestos criadores que unem o simbólico e o material, que unem o sensível e o inteligível. Por isso mesmo, cabe-lhes bem a metáfora da ponte lançada entre tempos, espaços, indivíduos, grupos sociais e culturas diferentes; ponte que se constrói com imagens e que tem no imaginário um lugar de destaque.
Durante longo tempo os museus serviram apenas para preservar os registros de memória e a visão de mundo das classes mais abastadas; de igual modo funcionaram como dispositivos ideológicos do estado e também para disciplinar e controlar o passado, o presente e o futuro das sociedades em movimento. Na atualidade, ao lado dessas práticas clássicas um fenômeno novo já pode ser observado. O museu está passando por um processo de democratização, de ressignificação e de apropriação cultural. Já não se trata apenas de democratizar o acesso aos museus instituídos, mas sim de democratizar o próprio museu compreendido como tecnologia, como ferramenta de trabalho, como dispositivo estratégico para uma relação nova, criativa e participativa com o passado, o presente e o futuro. Trata-se de uma denodada luta para democratizar a democracia[2]; trata-se de compreender o museu como um lápis[3], como uma singela ferramenta que exige certas habilidades para ser utilizada. A metáfora do lápis sugere a necessidade do aprendizado da técnica de manipulá-lo, aliada a um processo de aprender a ler e a escrever. Ainda assim, mesmo que o indivíduo seja alfabetizado, mesmo que ele saiba ler e escrever o mundo, não se tem nenhuma garantia sobre a orientação ideológica das histórias e narrativas que poderá escrever e ler
[1] Poeta, museólogo, mestre em Memória Social (Unirio) e doutor em Ciências Sociais (Uerj), professor adjunto da Unirio e coordenador técnico do Departamento de Museus e Centros Culturais do Iphan.
[2] Ver SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
[3] Compreendendo que os museus tanto servem para acender como para apagar memórias, a professora Regina Abreu sugeriu que eles também sejam considerados como borrachas. Reunindo essas duas imagens podemos pensar nos museus como lápis que levam em si uma borracha.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O Museu como agente de mudança...

Para que o Museu possa ser agente de mudança, ele tem que ter em si as condições necessárias à incubação: Os meios técnicos, os recursos humanos, etc. mas a real transformação só é operada quando o Museu está ciente da sua importância e responsabilidade para a comunidade de que faz parte: enquanto instrumento de comunicação por excelência, sendo agente activo de mudança de mentalidades, sendo um instrumento educativo, intervindo na comunidade, envolvendo-se nos problemas que a afectam e procurando contribuir para a sua resolução, sendo um espaço sem exclusões, aberto à sociedade, ao conhecimento e à cultura, à descoberta do prazer, à reflexão, à contemplação, à participação, à compreensão e à inquietação.Enfim, por tudo isto, podemos afirmar que identidade e memória, enquanto espaços museológicos reforçam-se mutuamente, porque sabemos de onde vimos, conhecemos as nossas raízes, destinguimos o que nos une e o que nos separa, assim estamos aptos a entender a relação entre cultura e memória, que é expressa na atitude cultural, isto é, no lembrar, recordar, no assumir a importância em aprender com a experiência e com o que nos rodeia.

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