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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Tecendo Natais...

A década de oitenta percorria a passadeira do tempo. Foi ela que me trouxe estes natais que hoje recordo. Era ainda solteiro.
Durante o dia, aos poucos, como pequenas revoadas de andorinhas, os meus irmãos iam chegando — de Montalegre, do Pinhão, do Porto, de Paris e, por vezes, de Melbourne. E a casa acendia-se, ganhava vida e calor como um ventre. Parecia ter alma! A cada chegada, a pirâmide das prendas, de braço dado com o pinheiro, ganhava altura e ateava a curiosidade dos mais novos. A família, do amanhecer ao colo da noite, ia-se desfragmentando, ficando inteira sob o mesmo teto, onde a retorta da união, borbulhando de afeto, decantava o sal da saudade, tornando-nos capazes voltar a desafiar o tempo. Os olhos da minha mãe tinham então outro brilho, e o seu rosto floria numa expressão de alegria quase pueril. Incansável, em constante vaivém pela casa, fazia-se omnipresente, dava-se a uma seara de três gerações.
Habitualmente, havia mais de vinte pratos sobre uma mesa ampla que enchia toda a sala de jantar. Durante a ceia, falávamos um pouco de tudo: contávamos histórias e anedotas, lembrávamos o passado, outros natais, os que já nos tinham deixado e os mais distantes, lá no outro lado do mundo, que ligavam sempre para também, assim, estarem connosco à mesa. O telefone saltitava de mão em mão, ouvindo os repetidos votos de um Santo Natal e feliz Ano Novo. E todos os diálogos, forçosamente curtos, terminavam com o mesmo cliché: “vou passar-te a Nor”; “vou passar-te a Carmo”; “vou passar-te a Fátima”… As crianças, ansiosas e excitadas, comiam rapidamente. E nem a sobremesa os retardava. Antes dos cafés chegarem à mesa, já elas estavam na sala de estar a ver televisão, com os olhos ora no ecrã ora no colorido dos presentes, deambulando, como ovelhinhas soltas em viçoso pasto, nos cumes da paciência.
Um dos filhos vestia-se de Pai Natal, e entregava as prendas, uma a uma. Era um ritual, acompanhado de aplausos, que demorava cerca de meia hora. Depois dos agradecimentos, enquanto os catraios mergulhavam nas suas novas fantasias, como se se afundassem, subitamente, num mundo paralelo, esfolheávamos páginas de nós, à volta da mesa e da braseira, pela noite dentro, até o sono ser de chumbo e o corpo não poder mais.
A manhã seguinte nascia sempre preguiçosa e a declinar as horas. Depois, acabava por precipitar o relógio e, a contragosto, lá servia as despedidas:
— Deus queira que de hoje a um ano!
— Cá estaremos, se Deus quiser!
— Então não há de querer?!
No forro daquelas pequenas frases feitas, saídas do peito como um disfarçado esconjuro, escondia-se o inconfessável receio de não nos voltarmos a juntar todos no Natal seguinte. Era como se o próprio tempo, nesse momento, nos viesse cobrar, em silêncio, as suas generosas concessões, e lembrar-nos de que tudo neste mundo tem um fim.
— Ide com cuidado, que as estradas estão cheias de gelo! — recomendava a minha mãe, com o coração nas mãos. — Telefonai ao chegar!
A casa, a cada despedida, ia esmorecendo a sua chama, ganhando os desmaiados tons da melancolia. A mesa permanecia cheia de tudo, mas geometricamente só, inerte como um palco sem atores. Os casados partiam para outros lares, que os esperavam para um “segundo Natal”. Eu e os meus dois irmãos mais novos, também solteiros, ficávamos com a minha mãe a enganar o vazio frio que restava e a desfiar saudade.
Só então ela se rendia ao quebranto. Depois do almoço, com o ramerrão da casa resolvido, deitava-se sobre a cama, e descansava placidamente. O seu corpo pequeno — franzino, encolhido sobre a colcha, mal coberto por uma delicada manta de lã — e sua expressão quase meninil, enquanto dormia, eram de uma rapariguinha que, em sonhos, desdobando o fio do tempo, estava ali entretida a tecer natais, passados e futuros...

Flávio Monte

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